Por Marcelo Bergamin Conter
Palestra realizada para a aula aberta “Dos meios de comunicação às indústrias criativas”, ocorrida na FAMECOS, PUCRS, em 29 de agosto de 2023
Quando o professor Deivison Moacir Cezar De Campo me convidou pra falar sobre “o que é meio de comunicação hoje?”, eu imediatamente lembrei de Marshall McLuhan. Ou seja, não interpreto a pergunta querendo respondê-la sugerindo qual é o meio do momento, e sim, como os meios contemporâneos estão transformando radicalmente a forma como nos comunicamos. McLuhan não apenas fez uma análise impressionante dos meios de comunicação de sua época, os anos 1960, como também projetou como estaríamos nos comunicando agora. Operando com uma linguagem similar a da publicidade, ele criou aforismos que mais pareciam slogans publicitários. O mais celebrado, e alguns de vocês já devem ter ouvido, é “o meio é a mensagem”. Mas não nos enganemos: ele não quer dizer com isso que o conteúdo é irrelevante, tampouco uma inversão de valores. O que está implícito ali é que “amensagem é a mudança de escala, cadência ou padrão que este meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas”. Ou seja, o meio configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas. O Drive-Tru só existe porque existe a malha rodoviária. A lâmpada só liga e essa palestra só pode acontecer neste formato porque turbinas estão girando com a força d’água em Itaipu. O meio pretende-se transparente, como a água do aquário para os peixes, como a televisão que se pretende janela para a realidade.
Na época em que McLuhan escreveu suas teses, a energia elétrica, a transmissão via satélite, o rádio e a televisão estavam proporcionando ao mundo a possibilidade de tornar a comunicação praticamente instantânea. Nós, que vivemos 60 anos depois destas ideias, já nascemos imersos na comunicação simultânea. Mas eu gostaria hoje de destacar uma diferença que existe entre as mídias da época de McLuhan para as mídias digitais.
Quando ouvimos rádio AM ou FM a informação é fragmentada e convertida em ondas senoidais que vibram milhões de vezes por segundo, rebatem na ionosfera e perambulam em tempo real pela atmosfera para que qualquer receptor possa sintonizá-la. Com a TV aberta é parecido, mas o sinal passa da ionosfera e é rebatido por satélites.
Obviamente, quando eu ouço rádio ou vejo TV aberta, eu não posso voltar, assistir de novo, fazer buscas. O fluxo radiofônico ou televisivo se confunde com o fluxo da minha vida. Não é à toa que a TV acompanha nossas rotinas: jornal no café da manhã para sair ao trabalho bem-informado; receitas antes do almoço; jornal de infotenimento no almoço seguido de esportes, para boa digestão; e assim por diante. Era preciso esperar até tarde da noite para ver um episódio novo de uma série, a gente via um único episódio por semana e depois isso era assunto com os amigos para a semana inteira, porque todo mundo assistia tudo ao mesmo tempo. Assim era a vida até a virada do milênio.
Como bem expressa Philip Dubois, a informática veio para absorver todas as mídias anteriores. Ela traduz qualquer informação visual ou sonora em bits, que podem ser arquivados em unidades de armazenamento como discos rígidos. Navegar pela internet é, sempre, vasculhar um arquivo. Um grande arquivo que seria construído pela comunidade, pelo povo, como muitos profetizaram.
Diferentemente da instantaneidade e do fluxo constante da televisão e do rádio, os dados que acessamos pelo computador ou celular são sempre uma duplicata de um dado que está arquivado em outro lugar. Enquanto a TV analógica era uma imagem do presente, na internet, tudo é sempre uma imagem do passado. Mesmo quando assistimos “TV ao vivo” pela internet. Quem vê um jogo de futebol pela web e ouve o vizinho que ainda tem rádio gritando gol dois minutos antes sabe do que eu estou falando. É que TV pela internet envolve uma série de procedimentos de codificação, decodificação, buffer, compressão de dados, descompressão de dados, passagem por vários pitstops(servidor, caixa da internet do prédio, modem, computador) e tudo isso causa o famoso delay. Se pesquisarmos pelo endereço da Famecos no Google, daqui mesmo, essa requisição pode sair do continente para voltar com os resultados. No meio do caminho, pode passar por um cabo submarino enquanto um tubarão tenta morder a informação.
Então, por mais ágil, transparente e aparentemente simultânea que a experiência com a web nos pareça, nós estamos sempre olhando para uma imagem, um som ou um texto do passado, quase como um telescópio que observa a luz de estrelas que não mais existem. Então, retomando a pergunta, o que é meio de comunicação hoje?, eu diria que são os meios que lidam menos com o presente e o futuro e, ao invés disso, investem-se de imagens do passado para reorganizá-lo no presente.
Lembrando que, de acordo com Henry Bergson, o passado não é o que foi, mas o que é, o que se acumula no presente, como uma bola de neve que incha a medida que avança. O que é meio de comunicação hoje? É o acúmulo de todo o passado dos meios de comunicação. Nós ainda fotografamos, ainda filmamos, ainda escrevemos.
Gostaria de relembrar outra coisa que o McLuhan disse. Ele percebeu que, toda vez que um novo meio de comunicação surgia, ele precisava imitar as mensagens dos meios anteriores. Quando surge a internet, surge o termo “página” para se referir às URLs, porque era preciso que a web se parecesse com livros, revistas, bibliotecas, algo que já estávamos acostumados, até que ela tomasse sua própria forma. E ela vai fazer isso resgatando o princípio do arquivo, que é a base de todo sistema informático que utilizamos. E um meio de comunicação que tem como fundamento a produção de sentido partindo do tratamento de dados arquivados irá certamente afetar os modos como produzimos cultura.
Quem percebeu isso com clareza foi o crítico musical Simon Reynolds, que em 2010 escreveu o livro Retromania. Ele reconheceu que entre 2001 e 2010 não surgiu nenhum gênero musical novo que tomasse conta das paradas, mas uma grande revisitação de estéticas de décadas passadas, como é evidente na obra de Amy Winehouse, White Stripes, Strokes, Florence & The Machine, eu adicionaria aí Cachorro Grande, para ficar apenas em alguns exemplos. Ele percebe aí um reflexo dos novos hábitos de escuta de música, que mudam dramaticamente com o advento do Napster, da pirataria e em especial do acesso à memória total da música pop por meio de sites como o YouTube. A nova geração de músicos passa a ser menos influenciada pelas tendências impostas pelo mainstream e as modas do momento e mais pelo mar de informação que o arquivo digital oferece.
Na década seguinte, entre 2011 e 2020, softwares de edição não-linear e controladores MIDI irão facilitar processos criativos, mas em cima de samples, a partir do arquivo, portanto. Se na década passada a norma erainspiração no passado, agora parte-se para o sampleamento dos arquivos do passado. Imaginem uma bola de neve que incha à medida que se refere a si própria. O gênero musical que melhor representa esse novo cenário é o vaporwave. Em síntese, trata-se do rearranjo do arquivo audiovisual e sonoro da era da web 1.0 – com todas as suas promessas futurísticas, gráficos assépticos, sons de alerta de sistemas operacionais como Windows 95 etc. – sendo colocados em justaposição com imagens visuais e sonoras relacionadas simbolicamente ao capitalismo financeiro dos anos 1980 – comerciais de TV de multinacionais; Muzak; smooth jazz e outros gêneros musicais típicos de spas, resorts e saguões de hotéis cinco estrelas –. O que o vaporwave fez foi colocar na frente do palco aqueles sons e imagens que antes pensávamos apenas ser parte do fundo para realizarmos um consumo irônico – aquele jingle chato do McDonald’s que trocávamos de canal quando começava, aquela música cafona do Kenny G que tocava na sala de espera do dentista.
Com o vaporwave relembramos aberturas de seriados, comerciais de TV da nossa infância e percebemos que estas memórias eram compartilhadas não só com nossos amigos, mas com pessoas do mundo inteiro, porque, obviamente, são expressões do capitalismo financeiro. Pickering e Kightley são certeiros ao dizerem que “ao invés de nos lembramos de experiências pessoais, é mais provável que nos lembremos de experiências mediadas e, como tal, a mediação do passado é um processo pelo qual a mídia pode fixar e limitar a memória social”.
O vaporwave é uma expressão do underground. Do lado do mainstream, estamos vivenciando a era da plataformização, o caminho pelo qual se tem conseguido combater a pirataria, mesmo que isto implique em músicos mal pagos e o enfraquecimento das cenas locais. Nos entregamos às plataformas, mas sem desconfiar que, assim como o vaporwave, elas também realizam as suas operações no arquivo, ressignificando o passado nos seus próprios termos. A plataformização acabou com a utopia da web 1.0, com a ideia de que o mundo virtual seria horizontal e sem fronteiras. Há uma dimensão política por trás disso tudo, uma lógica neoliberal que estabelece controle dos fluxos e da retenção de informação para fins de arquivamento de dados por parte de empresas privadas. Jussi Parikka escreve em seu livro O que é arqueologia da mídia que
O poder não mais é circulado e reproduzido apenas através de espaços físicos e instituições – como a clínica ou a prisão analisadas por Foucault – ou práticas de linguagem, mas ocorre nos interruptores e relés, software e hardware, protocolos e circuitos dos quais nossos sistemas técnicos de mídias são feitos.
Na época das mídias analógicas, a gente via um televisor na sala e poderia dizer para si “olha, um meio de comunicação”, e depois para o rádio e “olha, outro meio”. Hoje, nós estamos imersos em um meio de comunicação que arquiva tudo o que processa. E com isso eu quero dizer imersos em diferentes sentidos. Primeiro que essa não é uma ideia nova. Muniz Sodré já escreveu sobre o bios midiático, McLuhan sobre a Aldeia Global, e antes ainda, Vernadsky falava em noosfera. Ondas de wi-fi, 4g, 5g, bluetooth, AM, FM, VHF, UHF e tantas outras como a frequência dos bombeiros, da polícia e as rádios piratas, estão ocupando a atmosfera, o que também não é nenhuma novidade.
Em 2013, numa Semana da Imagem na Unisinos, Vinícius Andrade Pereira comentou que a ideia de offlinetinha acabado. A gente ainda saía da internet, desconectava o computador, mas quando reconectava tinha que lidar com os emails e demais mensagens que nos enviaram enquanto estávamos fora, porque o arquivamento não para mais. Naquela época, a falsa separação entre real e virtual já começava a erodir.
Dez anos depois e a coisa ficou muito mais intensa, porque não existe mais o offline: hoje os programas que utilizamos ou escondem os caminhos pelos quais nós podemos nos desconectar ou sequer nos dão essa opção. Saímos da sociedade disciplinar de Fouacult para a Sociedade de Controle de Deleuze. Luís Martino sintetiza esta ideia, dizendo que “as informações eletrônicas sobre o indivíduo permitem que seus padrões de consumo, lazer e ações cotidianas sejam continuamente monitorados e redesenhados nos gráficos e planilhas”. Sejam as fotos e vídeos que tiramos nas viagens, as opiniões que emitimos nas redes sociais, tudo isto vira arquivo para que o poder circule a partir não só da extração descontrolada dos recursos naturais, como tem sido desde os primeiros estágios do capitalismo, mas também para que o poder circule a partir da mineração descontrolada de nossos dados pessoais. Bifo Berardi denomina este estágio de semiocapitalismo. E é isto que quero dizer com imersão, por que a produção de sentido se confundiu com a produção de capital. A experiência de vida, hoje, é a de viver imerso em um grande meio de comunicação, cada um no seu Show de Truman pessoal, mergulhado na tediosa tarefa de produzir imagens do passado para alimentar o semiocapitalismo. E parece não haver alternativa, porque nós nos conformamos, nós assinamos os termos de condições, nós estamos assistindo a chegada do antropoceno por meio de produtos da industrialização, que é um dos principais agentes da mudança climática. Os meios de comunicação e os meios de poluição são os mesmos. Para Mark Fisher, a situação que vivemos é deprimente, porque se antes o grande problema social na era do capitalismo industrial era o tédio (trabalhar 30 anos numa mesma fábrica e depois se aposentar), o grande problema social do capitalismo tardio é que ele substituiu o tédio pela ansiedade, seja pelo caminho da precarização do trabalho, seja pelo caminho das micro doses de distração que as redes sociais nos oferecem com drops de imagens do passado. Observando por este ângulo crítico, percebemos que as crises políticas, ecológicas, sociais, culturais e sanitárias que estamos vivendo, portanto, são sobretudo uma crise de futuro.